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Harmonia Funcional

 HARMONIA FUNCIONAL

 

 

MÓDULO 3 — Harmonia funcional na prática: rearmonização simples e análise de músicas

Aula 7 — Substituições por função: trocando sem estragar

 

           Chega um momento no estudo de harmonia em que você começa a sentir duas vontades ao mesmo tempo. A primeira é boa: você quer sair do básico, quer variar, quer deixar a sequência mais interessante. A segunda é um pouco insegura: você tem medo de trocar um acorde e “estragar” tudo, como se a música desmontasse na sua frente. Essa aula nasce exatamente desse ponto. A ideia é te mostrar que existe um jeito muito seguro de variar progressões sem perder o sentido musical: substituir acordes por função.

           Quando a gente fala em substituição por função, estamos falando de uma troca que respeita o “papel” do acorde na história. Lembra da lógica do curso? A harmonia tonal costuma se mover entre repouso (tônica), preparação/movimento (subdominante) e tensão com direção (dominante). Então, se um acorde estava cumprindo um papel de repouso, a troca mais segura é escolher outro acorde que também soe como repouso. Se estava preparando, troque por outro que prepare. Se estava tensionando, troque por outro que tensione. É simples assim — e, ao mesmo tempo, poderoso, porque te dá liberdade com consciência.

           Vamos trabalhar com um exemplo bem comum: a progressão C – Am – F – G (em Dó maior). Ela aparece em um monte de canções e é ótima para estudar, porque tem um caminho claro. O C é tônica (casa), o Am costuma ter um ar de repouso também (uma “tônica com outra cor”), o F é subdominante (abre, prepara), e o G é dominante (puxa para voltar). Agora observe a sacada: se você entende isso, você não precisa ficar preso a esses quatro acordes. Você pode variar sem perder o caminho, porque você sabe o que cada um está fazendo.

           Em Dó maior, uma forma prática de pensar nas famílias funcionais é assim: na família da tônica, além do C (I), costumam funcionar bem o Am (vi) e o Em (iii). Não significa que eles são “iguais”, mas que eles compartilham um ar de estabilidade e conversam bem com o centro tonal. Na família da subdominante, os queridinhos são F (IV) e Dm (ii). Eles dão aquela sensação de movimento e preparação, como quem sai do repouso e caminha. Já na família da dominante, o mais comum é G (V) ou G7, e em alguns contextos aparece o Bdim (vii°), que é mais tenso e mais delicado para iniciantes, mas ajuda a

entender que existe mais de um jeito de criar direção.

           Com esse mapa em mãos, vamos fazer o primeiro tipo de substituição, o mais seguro: trocar dentro da mesma família. Se você tem C – Am – F – G, pode trocar o Am (que está funcionando como repouso) por Em, e obter C – Em – F – G. O caminho geral continua: casa, repouso com variação, preparação, tensão. A música ainda “faz sentido”, mas a cor muda. Em vez daquele clima mais melancólico que o Am pode trazer, o Em pode soar um pouco mais “puxado para frente”, mais leve ou mais brilhante, dependendo do contexto. A sensação é de variação sem ruptura.

           Depois, você pode variar a subdominante. Em vez de F, experimente Dm: fica C – Am – Dm – G. De novo, você não está inventando moda. Você está trocando “um acorde que prepara” por “outro acorde que prepara”. É como mudar o caminho dentro do mesmo bairro: você ainda está indo para o mesmo destino, só escolheu uma rua diferente. Em muitos estilos, essa troca é tão natural que parece que sempre foi assim.

           O que essa aula quer te ensinar, acima de tudo, é a diferença entre “trocar por gosto” e “trocar com intenção”. Trocar por gosto pode até funcionar, mas às vezes você muda a função sem perceber. Aí a música perde o rumo e você fica com aquela sensação: “não sei por que ficou estranho”. Por exemplo, se você troca F (subdominante) por Em (tônica), você pode reduzir a sensação de preparação. A progressão pode ficar estável demais, como se ela parasse de caminhar. Não é que seja proibido; é que muda a narrativa. E, se a sua intenção era preparar o refrão, por exemplo, talvez não seja a melhor hora de tirar a subdominante do lugar.

           Outro ponto muito importante: substituição por função não é só um truque para “enfeitar”. Ela é uma ferramenta de arranjo e de acompanhamento. Imagine que você está tocando com alguém que canta e a pessoa repete o refrão três vezes. Se você tocar sempre a mesma sequência do mesmo jeito, pode ficar monótono. Mas se você variar por função — sem alterar a harmonia de forma agressiva — você mantém a canção reconhecível e, ao mesmo tempo, cria movimento interno. Na prática, você pode tocar o refrão na primeira vez com C – Am – F – G, na segunda com C – Em – Dm – G7, e na terceira voltar ao original com uma dominante mais forte. O público não sente que “mudou a música”; sente que “cresceu”.

           Para treinar isso de modo bem musical, escolha uma progressão de quatro acordes no tom de C (ou no

tom de C (ou no tom que você estiver confortável) e faça um desafio simples: crie três versões, trocando apenas um acorde por vez e mantendo a função. Depois, toque as três versões em sequência e perceba o efeito. A pergunta aqui não é “qual está certa?”, e sim: o que mudou na sensação? Você está treinando o ouvido para perceber cor, direção e estabilidade — que é exatamente o que um músico precisa para acompanhar bem e criar com segurança.

           E um aviso carinhoso para fechar: não se cobre “perfeição” nesse processo. No começo, seu ouvido pode não distinguir com clareza o que é tônica, subdominante e dominante em todo contexto. Isso é normal. A habilidade vai se formando com repetição e escuta atenta. O mais importante é ter um método para não ficar no escuro: se você troca um acorde e a música “quebra”, volte e pergunte: eu mudei a função sem querer? Muitas vezes, só essa pergunta já resolve. E, quando você aprende a variar respeitando função, você ganha algo precioso: liberdade musical sem ansiedade.

Referências bibliográficas

  • SCHOENBERG, Arnold. Funções Estruturais da Harmonia. São Paulo: Via Lettera, 2004.
  • PISTON, Walter. Harmony. New York: W. W. Norton & Company, 1987.
  • KOSTKA, Stefan; PAYNE, Dorothy; ALMÉN, Byron. Tonal Harmony: With an Introduction to Twentieth-Century Music. New York: McGraw-Hill Education, 2017.
  • LACERDA, Osvaldo. Compêndio de Teoria Elementar da Música. São Paulo: Ricordi Brasileira, 2000.
  • ZAMACOIS, Joaquín. Tratado de Harmonia. Barcelona: Editorial Labor, 1975.


Aula 8 do Módulo 3 — Rearmonização simples: dar uma “cara nova” sem perder a música de vista

 

           Rearmonizar, para muita gente, parece uma palavra grande demais, quase como se fosse algo reservado para músicos “avançados”. Mas a verdade é que rearmonização, no começo, pode (e deve) ser algo bem pé no chão: pegar uma progressão simples e encontrar maneiras seguras de deixá-la mais interessante, sem transformar a música em outra coisa e sem perder o senso de direção. Rearmonização simples é isso: uma forma de variar com consciência, como quem muda a roupa de uma canção — ela continua sendo ela mesma, só aparece com outra cor.

           Antes de qualquer técnica, vale uma ideia que evita dor de cabeça: rearmonizar não é sair trocando acordes aleatoriamente. É manter a intenção harmônica (repouso, preparo, tensão e resolução) e mexer no caminho, na duração ou nas “peças intermediárias” que conectam tudo. Se você

respeita a função, você tem uma margem enorme para criar variações sem quebrar a música. E é exatamente isso que a gente vai praticar aqui.

           Vamos começar com um exemplo bem conhecido, em Dó maior: C – Am – F – G. Você já viu essa sequência várias vezes no curso porque ela é perfeita para treino: é simples, soa musical e tem um fluxo claro. A rearmonização mais “barata” (no melhor sentido!) e eficaz para iniciantes é o primeiro truque desta aula: trocar o V por V7. Ou seja, em vez de G, você faz G7. A progressão vira C – Am – F – G7. Parece uma mudança pequena, mas ela faz a chegada no C ficar mais convincente. É como colocar uma vírgula bem colocada numa frase: de repente, tudo se encaixa melhor.

           Por que isso funciona? Porque o V7 cria uma tensão mais definida, e o ouvido reconhece com mais clareza o pedido de resolução. Você não precisa entender todos os detalhes técnicos agora; basta sentir o efeito: G7 “puxa” mais do que G. Então, sempre que você quiser que a volta para a tônica fique mais forte (especialmente no final de um verso, refrão ou música), essa troca costuma funcionar muito bem.

           O segundo truque é quase tão clássico quanto o primeiro: inserir o ii antes do V. Em Dó maior, o ii é Dm. Então, em vez de ir direto para o G7, você cria uma “escadinha” de preparação: Dm – G7 – C. Se você colocar isso na progressão, pode ficar assim: C – Am – F – Dm – G7 – C. Perceba o que aconteceu: você não destruiu a música; você apenas deu mais “história” para a chegada. Antes, a música parecia dizer “vamos voltar”. Agora ela diz: “vamos voltar… preparando… tensionando… chegando”. Essa sensação de construção é um dos segredos de arranjos mais emocionantes, mesmo quando os acordes são simples.

           Esse truque também tem uma utilidade prática gigante: ele ajuda a resolver aquele problema comum de iniciantes em que a música parece “não fechar direito”. Muitas vezes, não é falta de talento; é só falta de preparação harmônica. Inserir o ii antes do V7 é uma maneira segura de dar essa preparação. É por isso que você encontra ii–V–I em tantos estilos — ele organiza o caminho de forma muito natural para o ouvido.

           Agora vamos ao terceiro truque, que dá uma sensação de “acabamento” bonito e acolhedor: cadência plagal no fim, ou seja, IV – I. Em Dó maior: F – C. Esse tipo de resolução é menos tensa do que a autêntica (V–I), e por isso tem um clima mais “descansado”, mais “fechamento de abraço”. Você pode usar isso como

Esse tipo de resolução é menos tensa do que a autêntica (V–I), e por isso tem um clima mais “descansado”, mais “fechamento de abraço”. Você pode usar isso como final de música, ou como um segundo tipo de final depois de um grande clímax. Por exemplo: você pode fechar forte com G7 – C e, em seguida, fazer um pequeno eco: F – C.

Fica com cara de conclusão completa, como se você tivesse colocado um ponto final e depois assinado embaixo.

           Até aqui, repare que a rearmonização simples não está pedindo que você aprenda centenas de acordes novos. Ela está pedindo que você aprenda a mexer na estrutura. E existe uma maneira muito prática de fazer isso sem se perder: pensar em rearmonização como uma mistura de três ações básicas: fortalecer, preparar e prolongar.

           Fortalecer é o que você faz quando transforma V em V7, por exemplo. Preparar é o que você faz quando coloca o ii antes do V. Prolongar é quando você aumenta a duração de um acorde, repete um acorde importante, ou cria um pequeno caminho extra sem mudar o destino. Muitas rearmonizações simples são, no fundo, combinações dessas três ações.

           Um exercício muito bom é pegar uma progressão curta e transformá-la em uma versão mais longa, como se você estivesse fazendo uma “edição estendida” da música. Por exemplo, pegue C – Am – F – G e tente criar uma versão de 8 compassos usando as ferramentas da aula. Uma proposta possível seria: C – Am – F – F | Dm – G7 – C – C. Aqui, você prolongou o F (para criar mais espaço), preparou com Dm, fortaleceu com G7 e resolveu no C com calma. E tudo isso mantendo a harmonia dentro do tom, sem exigir nenhum salto perigoso.

           Outra prática excelente é rearmonizar mantendo a melodia na cabeça. Mesmo que você não esteja cantando, tente imaginar a linha melódica. Isso é importante porque rearmonização não é só “harmonia bonita sozinha”. A harmonia precisa continuar servindo a canção. Às vezes, um acorde que é lindo no papel atrapalha a melodia naquele ponto específico. Então o treino ideal é: toque a progressão original, cante ou imagine a melodia, e depois toque a rearmonização e perceba se a melodia continua confortável. Se sim, ótimo. Se não, volte um passo e faça uma rearmonização mais suave.

Isso é maturidade musical: não é “encher de acorde”, é escolher o que funciona para aquela música.

           Para fechar, vamos com uma mentalidade que te ajuda muito a continuar evoluindo: rearmonização simples não é “um degrau menor” — ela é

fechar, vamos com uma mentalidade que te ajuda muito a continuar evoluindo: rearmonização simples não é “um degrau menor” — ela é o coração do tocar bem. Porque tocar bem, na prática, é saber fazer escolhas pequenas que mudam o resultado. Às vezes, a diferença entre um acompanhamento “ok” e um acompanhamento “emocionante” está em colocar um G7 no lugar certo, em preparar com um Dm antes do refrão, ou em finalizar com um F–C que abraça o ouvinte. Quando você domina essas ferramentas, você não depende mais de decorar cifras prontas: você passa a entender como construir caminhos.

Referências bibliográficas

  • SCHOENBERG, Arnold. Funções Estruturais da Harmonia. São Paulo: Via Lettera, 2004.
  • PISTON, Walter. Harmony. New York: W. W. Norton & Company, 1987.
  • KOSTKA, Stefan; PAYNE, Dorothy; ALMÉN, Byron. Tonal Harmony: With an Introduction to Twentieth-Century Music. New York: McGraw-Hill Education, 2017.
  • LACERDA, Osvaldo. Compêndio de Teoria Elementar da Música. São Paulo: Ricordi Brasileira, 2000.
  • ZAMACOIS, Joaquín. Tratado de Harmonia. Barcelona: Editorial Labor, 1975.


Aula 9 do Módulo 3 — Como analisar a harmonia de uma música sem se perder (um método em 5 passos)

 

           Chegar na última aula do curso é um momento especial, porque é aqui que as peças começam a se juntar de um jeito bem concreto. Até agora você aprendeu a sentir o “lugar de casa” da música, a entender campo harmônico, funções, cadências, dominante forte, progressões clássicas e substituições. Só que, na realidade, quando você abre uma cifra ou ouve uma música nova, não aparece uma placa dizendo: “isso aqui é subdominante”, “aqui é uma cadência autêntica”. Você precisa ter um jeito de olhar para a música e organizar as informações, como quem acende a luz num quarto bagunçado. É isso que esta aula te entrega: um método simples, humano e prático para analisar harmonia funcional sem entrar em pânico.

           A primeira coisa que vale dizer é que análise harmônica não é um concurso de inteligência. É uma ferramenta para você tocar melhor, acompanhar melhor, compor melhor e, principalmente, entender o que está ouvindo. E entender música não significa ter certeza de tudo o tempo todo. Às vezes existe mais de uma leitura possível, especialmente em estilos populares onde a harmonia pode ser simplificada na cifra, onde o arranjo muda ao vivo, ou onde a melodia puxa o ouvido para um lado. Então, se você tirar daqui uma postura, que seja esta: análise é

uma leitura possível, especialmente em estilos populares onde a harmonia pode ser simplificada na cifra, onde o arranjo muda ao vivo, ou onde a melodia puxa o ouvido para um lado. Então, se você tirar daqui uma postura, que seja esta: análise é um processo de aproximação. Você vai testando hipóteses, ouvindo, confirmando, ajustando. É assim que músicos fazem.

           O método que vamos usar tem cinco passos. Eles funcionam como uma sequência de perguntas que te levam do geral para o específico. E, conforme você pratica, ele vira quase automático.

Passo 1: descobrir o tom (onde está a “casa”).
Isso aqui já resolve metade do problema. Para achar o tom, você pode observar o acorde que aparece como ponto de descanso, especialmente no final de frases, no final do refrão ou no final da música. Mas atenção: nem sempre a música termina no acorde que parece “casa” (principalmente em músicas que terminam em suspensão), então não é só isso. Um teste bem prático é: toque ou imagine um acorde e veja se o ouvido relaxa. Quando relaxa, você provavelmente encontrou a tônica. Outro caminho é observar a melodia: muitas melodias “encostam” na nota da tônica em momentos de repouso. Em músicas simples, isso costuma ficar bem evidente.

Passo 2: escrever a progressão com calma (sem querer interpretar ainda).
Antes de colocar nomes, apenas registre o que está acontecendo. Quais acordes aparecem? Em que ordem? Quantos compassos cada um dura? Se você estiver trabalhando com cifra, escreva a sequência por partes: verso, pré-refrão, refrão, ponte. Se estiver ouvindo de ouvido, tente primeiro capturar a harmonia “macro”, os acordes mais claros, e só depois refine detalhes. Esse passo parece óbvio, mas ele evita um erro comum: tentar analisar enquanto ainda está tudo nebuloso. Primeiro, organize o material.

Passo 3: transformar os acordes em graus (I, ii, V…).
Esse é o momento em que o campo harmônico vira ferramenta. Depois que você sabe o tom, você olha para cada acorde e pergunta: “ele é o quê dentro desse tom?”. Em Dó maior, por exemplo, C é I, Dm é ii, Em é iii, F é IV, G é V, Am é vi, Bdim é vii°. Essa troca da cifra por grau é libertadora porque ela permite enxergar padrões que se repetem em qualquer tonalidade. Você deixa de ficar preso a “C, F, G” e passa a reconhecer “I, IV, V”. Isso faz você entender música em linguagem, não em memorização.

Passo 4: identificar as funções (T, SD, D).
Agora você volta para a ideia central da harmonia funcional: o papel de cada acorde.

você volta para a ideia central da harmonia funcional: o papel de cada acorde. Em geral, no começo, você pode usar um mapa bem prático: em tons maiores, I, vi e iii tendem a soar como tônica; ii e IV tendem a soar como subdominante; V (e V7) tendem a soar como dominante. Isso não é uma lei absoluta, mas é um guia excelente para iniciantes. E aqui acontece uma coisa bonita: você começa a perceber que uma música não é só uma sequência de acordes; ela é uma alternância de regiões emocionais. Em algum momento ela descansa, em outro ela prepara, em outro ela tensiona, e em outro ela resolve. Função é uma forma de organizar essas sensações.

Passo 5: localizar cadências (os pontos de “pontuação”).
Depois de marcar funções, você começa a procurar onde a música está dizendo “ponto final”, “vírgula”, “reticências” ou “plot twist”. Em termos práticos, procure movimentos como V–I (cadência autêntica, fechamento forte), IV–I (plagal, fechamento suave), terminações em V (meia cadência, sensação de continuação) e V–vi (deceptiva, engana e prolonga). Identificar cadências é como entender onde estão as frases do discurso musical. E isso muda completamente a forma como você acompanha, porque você passa a respirar junto com a música.

Para ver esse método funcionando, vamos pegar um exemplo bem comum: C – G – Am – F. Esse ciclo aparece em muitas canções e é ótimo para análise inicial. Primeiro, você testa o tom. Na maioria dos contextos, o ouvido descansa bem em C, então faz sentido pensar em Dó maior. Segundo, você escreve a progressão: C, depois G, depois Am, depois F. Terceiro, você transforma em graus: I – V – vi – IV. Quarto, você marca funções aproximadas: I (tônica), V (dominante), vi (tônica relativa), IV (subdominante). Quinto, você observa a cadência: muitas vezes, esse ciclo não “fecha” de forma tradicional a cada quatro acordes; ele fica girando.

O fechamento real aparece quando, em algum ponto do arranjo, entra um G7 – C (autêntica) ou quando o cantor segura uma nota e a harmonia faz um preparo. Ou seja: a cadência nem sempre está explícita na primeira sequência que você vê; às vezes ela está no jeito como a música organiza as partes.

           E é aqui que entra uma dica muito prática para análise de música popular: olhe para o fim das seções, não apenas para o loop principal. Muitas músicas têm um loop que roda (como I–V–vi–IV), mas pontuam as transições com um gesto mais cadencial, como ii–V–I ou V7–I. Se você só analisa o loop, parece que a música

nunca resolve. Quando você observa o fim do verso e a entrada do refrão, de repente a lógica aparece. A análise fica clara e o acompanhamento melhora instantaneamente.

           Outra dica importante: quando você encontrar um acorde “estranho” que não parece do tom, não entre em desespero. Em vez de pensar “não sei teoria suficiente”, pense assim: “o que esse acorde está tentando fazer?”. Muitas vezes ele está funcionando como uma dominante secundária, ou como uma cor emprestada, ou como um caminho de aproximação. Mesmo que você não dê o nome técnico, você pode perceber a função: ele está aumentando tensão? Está preparando um acorde específico? Está desviando para outra sensação por alguns instantes? A análise funcional tem essa vantagem: ela te dá uma forma de entender o papel mesmo quando os detalhes ainda não estão 100% claros.

           No fim das contas, analisar harmonia é aprender a enxergar o esqueleto da música, aquilo que sustenta o corpo. E quando você enxerga o esqueleto, você ganha autonomia: consegue transpor, consegue rearmonizar com mais segurança, consegue acompanhar improvisando variações sem se perder, e consegue compor sabendo onde quer que o ouvinte chegue. A melhor parte é que esse método não depende de “talento especial”.

Ele depende de prática consistente e de um ouvido que vai ficando mais atento com o tempo.

           Para encerrar esta última aula, fica um convite prático: escolha uma música simples que você já toque e aplique os cinco passos. Não precisa ser perfeito. Faça como um treino de leitura: hoje você gagueja um pouco, amanhã você lê melhor. O importante é criar o hábito de perguntar ao som: “onde é a casa?”, “qual é o caminho?”, “onde está a tensão?” e “onde a frase termina?”. Quando você consegue responder isso, você não está apenas tocando acordes — você está entendendo música.

Referências bibliográficas

  • SCHOENBERG, Arnold. Funções Estruturais da Harmonia. São Paulo: Via Lettera, 2004.
  • PISTON, Walter. Harmony. New York: W. W. Norton & Company, 1987.
  • KOSTKA, Stefan; PAYNE, Dorothy; ALMÉN, Byron. Tonal Harmony: With an Introduction to Twentieth-Century Music. New York: McGraw-Hill Education, 2017.
  • LACERDA, Osvaldo. Compêndio de Teoria Elementar da Música. São Paulo: Ricordi Brasileira, 2000.
  • ZAMACOIS, Joaquín. Tratado de Harmonia. Barcelona: Editorial Labor, 1975.


Estudo de caso do Módulo 3

 

“A mesma música, três versões… e um monte de armadilhas no caminho”

           A Júlia tocava violão para acompanhar a própria voz em eventos pequenos. Ela tinha um repertório bom, mas vivia com uma sensação incômoda: “parece que eu toco tudo do mesmo jeito”. Quando tentava variar, acontecia o pior: ou a música ficava esquisita, ou ela se perdia, ou o cantor convidado (quando aparecia) reclamava que “mudou demais”. Num workshop, ela recebeu uma tarefa simples: pegar uma canção que ela já tocava de olhos fechados e criar três versões — a original, uma versão um pouco mais rica e uma versão “mais adulta”, mas ainda segura. Foi aí que o Módulo 3 entrou como mapa e, ao mesmo tempo, como teste de maturidade.

           A música escolhida era bem comum e perfeita para estudo: a progressão do refrão era C – Am – F – G (tom de Dó maior). A melodia era simples, com notas que encaixavam bem no campo harmônico. Parecia fácil. Mas, conforme ela foi mexendo, apareceram erros clássicos de quem está começando a substituir e rearmonizar.

Cena 1 — O primeiro erro comum: “substituir por estética e mudar a função sem perceber”

A Júlia quis “dar uma sofisticada” e decidiu trocar o F por Em, porque achou o Em mais bonito no violão. Ela tocou:

C – Am – Em – G

Soou…, mas o refrão perdeu a sensação de abertura. Ficou como se a música tivesse encolhido. Ela não entendia por que, até olhar com calma para as funções:

  • F (IV) costuma funcionar como subdominante (abre, prepara).
  • Em (iii) costuma soar mais como tônica/estabilidade (mais repouso).

Erro 1: trocar um acorde e mudar o papel da frase (subdominante virou tônica).

Como evitar

Antes de substituir, faça a pergunta:

“Qual função esse acorde está cumprindo aqui? Eu quero manter essa função ou mudar a história?”

Se a intenção é variar sem quebrar, troque por acordes da mesma família funcional.

Correção segura:
Trocar F (SD) por Dm (SD), por exemplo:
C – Am – Dm – G

Cena 2 — O segundo erro comum: “rearmonizar e esquecer a melodia”

Animada, ela decidiu colocar acordes “mais chiques” e enfiou um D7 no meio (sem saber exatamente por que). Em alguns momentos, a melodia batia numa nota que virava choque com o acorde. A sensação era de “nota errada”, e ela começou a duvidar da própria voz.

Erro 2: rearmonizar olhando só para os acordes e ignorar a melodia.

Como evitar

Rearmonização precisa passar em dois testes:

1.     Função (o caminho harmônico faz sentido?)

2.     Compatibilidade com a melodia (as notas cantadas não brigam feio com o acorde?)

Um jeito prático:

  • toque
  • a rearmonização e cante devagar por cima;
  • se “arranha” em pontos específicos, simplifique ou ajuste o acorde naquele compasso.

Correção segura (sem sair do tom):
Em vez de inventar um acorde fora, ela aplicou o truque clássico:

  • G → G7
    e depois preparou com:
  • Dm → G7 → C

Ficou:
C – Am – F – Dm – G7 – C
Musical, coerente e amigável para a melodia.

Cena 3 — O terceiro erro comum: “achar que rearmonizar é colocar mais acordes”

Na tentativa de deixar “mais profissional”, Júlia encheu a progressão de trocas rápidas: um acorde por batida, sem respirar. O resultado foi um acompanhamento nervoso, que tirou espaço do canto. Parecia que o violão estava competindo com a música, não ajudando.

Erro 3: confundir riqueza harmônica com excesso de informação.

Como evitar

Rearmonização simples costuma funcionar melhor com a ideia de:

  • menos acordes, melhor escolhidos, e
  • mais consciência de duração.

Três estratégias seguras:

  • Prolongar um acorde importante (dar tempo para o ouvido sentir)
  • Inserir preparação apenas onde a frase pede (antes do refrão, antes do final)
  • Repetir a mesma harmonia e variar no ritmo/levada (música popular ama isso)

Correção prática:
Ela manteve a progressão base, mas só mexeu no final da frase:

Versão original:
C – Am – F – G

Versão “mais forte”:
C – Am – F – G7

Versão “mais narrativa” (só no final):
C – Am – F – Dm – G7 – C

Cena 4 — O quarto erro comum: “analisar errado o tom e rearmonizar em cima de uma hipótese ruim”

Em um segundo dia, ela tentou aplicar o mesmo processo em outra música e se confundiu: achou que o tom era G, mas na verdade a música descansava em Em (era uma sensação de centro menor). Tudo que ela tentou colocar como “resolução” soava estranho.

Erro 4: rearmonizar sem confirmar a ‘casa’ (tônica real).

Como evitar

Use um método curto antes de mexer em qualquer coisa:

1.     Onde a música descansa no fim das frases?

2.     Qual acorde parece “casa” quando você para nele?

3.     A melodia repousa em qual nota?

Se a resposta não estiver clara, não rearmonize ainda. Primeiro estabilize o centro tonal.

Correção prática:
Ela aplicou o método da Aula 9:

  • achou o tom,
  • escreveu a progressão,
  • transformou em graus,
  • marcou as funções,
  • identificou onde fechava (cadência).

Só depois mexeu.

Cena 5 — O quinto erro comum: “variar sem plano e perder a identidade da música”

A Júlia criou uma versão tão diferente que o cantor convidado disse: “tá bonito,

mas não parece mais a música”. Ela percebeu que tinha ultrapassado a linha. Rearmonização serve para vestir a canção, não para trocar a canção.

Erro 5: mudar demais de uma vez e perder a referência do original.

Como evitar

Trabalhe em “camadas”, como no Módulo 3:

  • Camada 1: substituição por função (trocas seguras)
  • Camada 2: fortalecer dominante (V → V7)
  • Camada 3: preparar cadências (ii–V–I)
  • Camada 4: só então experimentar algo fora (quando tiver intenção e ouvido)

Correção prática:
A regra que salvou a Júlia foi:

“uma mudança por vez, e sempre mantendo o caminho funcional.”

Resultado: três versões, uma mesma canção, sem ansiedade

No final, ela chegou em três versões que funcionavam ao vivo:

1.     Versão base (segura):
C – Am – F – G

2.     Versão com mais impacto (sem mudar a identidade):
C – Am – F – G7

3.     Versão com mais narrativa (perfeita para preparar refrão/final):
C – Am – F – Dm – G7 – C

E o melhor: ela sabia explicar o porquê. Não era sorte. Era função, cadência e método.

Checklist — Erros comuns do Módulo 3 e antídotos

  • Troquei e “quebrou” → provavelmente você mudou a função sem querer
  • A melodia começou a “bater errado” → teste cantando; ajuste o acorde naquele compasso
  • Ficou carregado demais → rearmonize com intenção, não com excesso
  • Tudo soa estranho em qualquer versão → talvez o tom esteja errado; volte ao método de análise
  • Virou outra música → faça mudanças em camadas, uma por vez

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