RACISMO
Fundamentos Históricos e Conceituais do
Racismo
O racismo é um fenômeno social complexo, historicamente construído, que se manifesta de múltiplas formas e impacta profundamente a vida das pessoas, especialmente de grupos historicamente marginalizados. Para compreendê-lo de forma ampla, é essencial diferenciar conceitos correlatos como preconceito, discriminação e racismo, além de entender as dimensões estrutural, institucional e individual desse fenômeno. Também é necessário analisar o papel dos estereótipos na manutenção dessas práticas, uma vez que eles contribuem para perpetuar desigualdades e exclusões.
O preconceito
refere-se a uma atitude ou julgamento prévio negativo em relação a indivíduos
ou grupos, baseado em características percebidas como diferentes, como cor da
pele, etnia, religião ou origem social. Tratase de uma predisposição
psicológica, frequentemente formada sem conhecimento adequado e sustentada por
estereótipos (Allport, 1954). O preconceito pode existir sem necessariamente se
manifestar em ações concretas.
A discriminação,
por sua vez, é a ação ou omissão que resulta em tratamento desigual ou injusto
a indivíduos ou grupos, motivada por preconceitos. Ela se expressa em práticas
que limitam direitos, oportunidades ou o acesso a recursos, seja de maneira
explícita ou velada (Guimarães, 2004). A discriminação é, portanto, a
materialização do preconceito no comportamento social.
O racismo vai além do preconceito e da discriminação, pois envolve a ideologia e o sistema que hierarquiza grupos humanos com base em características raciais ou étnicas, atribuindo-lhes valores, capacidades e comportamentos diferenciados. Essa hierarquização serve para justificar e manter relações de poder desiguais (Munanga, 2010). Enquanto o preconceito pode ser individual e subjetivo, o racismo é um fenômeno estrutural e coletivo, pois está enraizado em instituições, práticas e valores culturais.
O racismo pode se manifestar em diferentes dimensões, que
se interligam e reforçam mutuamente.
Racismo estrutural refere-se à forma como a desigualdade racial é incorporada às estruturas sociais, políticas e econômicas. Ele não depende da intenção consciente de indivíduos para ocorrer, pois está presente nas normas, valores e padrões de funcionamento da sociedade. Isso significa que, mesmo sem ações
explícitas de
discriminação, as estruturas sociais reproduzem desigualdades históricas
(Almeida, 2018). Um exemplo é a maior taxa de mortalidade materna entre
mulheres negras no Brasil, resultado de um sistema de saúde que reflete e
reproduz desigualdades raciais.
Racismo
institucional ocorre quando as instituições, de maneira consciente ou não,
adotam práticas que resultam em desvantagens para grupos racializados. Pode
estar presente em empresas, escolas, hospitais e órgãos públicos. É
perceptível, por exemplo, na sub-representação de pessoas negras em cargos de
liderança ou na abordagem policial desproporcionalmente dirigida a jovens
negros (Jaccoud & Beghin, 2002).
Racismo individual
é o comportamento de uma pessoa que expressa atitudes e práticas
discriminatórias contra outras com base em sua raça ou etnia. Diferente do
estrutural e do institucional, o racismo individual é identificado diretamente
no nível interpessoal, como insultos raciais, tratamento diferenciado ou
violência física e verbal motivada por questões raciais.
Essas três dimensões não atuam isoladamente; elas se sobrepõem. O racismo individual pode ser incentivado por práticas institucionais discriminatórias, que, por sua vez, são sustentadas por estruturas sociais racistas.
Os estereótipos são crenças simplificadas, generalizações ou imagens mentais atribuídas a um grupo social. Embora possam parecer inofensivos, eles frequentemente distorcem a realidade e sustentam visões preconceituosas (Lippmann, 1922). No caso do racismo, estereótipos raciais criam associações automáticas entre características físicas e supostas qualidades morais ou intelectuais.
Por exemplo, a ideia de que pessoas negras seriam
naturalmente menos capazes academicamente ou mais propensas à criminalidade é
um estereótipo que desconsidera fatores históricos e sociais. Tais concepções
não só alimentam o preconceito, mas também influenciam decisões em processos
seletivos, abordagens policiais, oportunidades educacionais e relações
interpessoais.
O papel dos estereótipos na perpetuação do
racismo é duplo:
1. Cognitivo: Eles moldam a forma como as
pessoas interpretam e reagem a comportamentos alheios, muitas vezes reforçando
preconceitos inconscientes.
2. Social: Eles legitimam e naturalizam
desigualdades, tornando mais difícil reconhecer práticas discriminatórias como
injustas.
A mídia, a educação e a cultura popular têm papel central na
formação e reprodução de estereótipos. Filmes, novelas e propagandas, por exemplo, muitas vezes reforçam imagens limitadas e negativas de grupos racializados, contribuindo para o ciclo de preconceito e discriminação.
A compreensão das diferenças entre preconceito, discriminação e racismo, bem como das formas pelas quais este último se manifesta – estrutural, institucional e individual – é essencial para o combate efetivo à desigualdade racial. Reconhecer o papel dos estereótipos é igualmente importante, já que eles moldam percepções e comportamentos, influenciando decisões individuais e coletivas.
O enfrentamento do racismo requer ações integradas, que envolvam mudanças nas estruturas sociais, nas instituições e nas práticas individuais. Além disso, é preciso investir na educação crítica, na desconstrução de estereótipos e na promoção de narrativas que valorizem a diversidade racial e cultural.
• Almeida,
S. (2018). Racismo Estrutural. São
Paulo: Pólen.
• Allport,
G. W. (1954). The Nature of Prejudice.
Cambridge: Addison-Wesley.
• Guimarães,
A. S. A. (2004). Preconceito e
discriminação: Queixas de ofensas e tratamento desigual dos negros no Brasil.
Revista de Antropologia, 47(1), 9–43.
• Jaccoud,
L., & Beghin, N. (2002). Desigualdades
Raciais no Brasil: Um Balanço da Intervenção Governamental. Brasília: IPEA.
• Lippmann,
W. (1922). Public Opinion. New York:
Harcourt, Brace and Company.
• Munanga,
K. (2010). Rediscutindo a mestiçagem no
Brasil:
Identidade nacional versus identidade negra. Petrópolis: Vozes.
O racismo, como fenômeno social e político, não é um elemento natural das relações humanas, mas uma construção histórica vinculada a contextos específicos de poder, dominação e exploração. Suas bases modernas foram moldadas pela expansão colonial europeia a partir do século XV, pela institucionalização da escravidão transatlântica e, posteriormente, pela legitimação “científica” de hierarquias raciais no século XIX. Essas raízes permanecem presentes nas estruturas sociais contemporâneas, influenciando relações econômicas, políticas e culturais.
A escravidão é uma prática milenar, mas o sistema escravocrata moderno, desenvolvido a partir do século XV, possui características singulares. Com a expansão marítima europeia, Portugal e Espanha
iniciaram um processo de colonização na África, América e Ásia, que
envolvia a exploração intensiva de mão de obra escravizada, especialmente
africana. Esse processo foi sustentado por um ideário de superioridade
europeia, que associava cor de pele e origem étnica à capacidade de trabalho,
moralidade e inteligência (Eltis & Engerman, 2011).
A escravidão transatlântica foi marcada por uma desumanização sistemática: africanos foram capturados, vendidos como mercadorias e submetidos a jornadas exaustivas, castigos físicos e privação de direitos.
Diferentemente de formas antigas de escravidão, nesse
modelo moderno a condição de escravizado era determinada pela raça, transmitida
hereditariamente, e justificada como “natural” ou “necessária” para o desenvolvimento
econômico colonial (Klein & Vinson, 2007).
Além disso, o racismo serviu como mecanismo ideológico para sustentar o sistema colonial, apresentando os povos colonizados como inferiores e, portanto, legitimando sua exploração. Essa visão reforçou a ideia de que o domínio europeu não era apenas econômico, mas também “civilizatório”, promovendo um discurso de missão cultural e religiosa.
No século XIX, o racismo ganhou novas bases de sustentação
com o surgimento da chamada pseudociência
racial. A expansão das ciências naturais, especialmente da antropologia
física, da frenologia e da eugenia, foi acompanhada por tentativas de
classificar a humanidade em “raças” hierarquizadas. Pesquisadores como Georges
Cuvier e Joseph Arthur de Gobineau defendiam que existiam diferenças biológicas
inatas entre grupos humanos, que explicariam desigualdades sociais e culturais
(Stepan, 1991).
A frenologia e a craniometria, por exemplo, mediam crânios e traços físicos para “provar” a superioridade da raça branca sobre outras. Já a eugenia, proposta por Francis Galton, defendia o “melhoramento” da espécie humana por meio de práticas de controle reprodutivo, visando manter ou aumentar as características consideradas desejáveis (Kevles, 1985).
Essas ideias, embora destituídas de base científica, foram amplamente aceitas e utilizadas para justificar o colonialismo, a segregação racial e políticas discriminatórias em diversos países, como as leis de segregação racial nos Estados Unidos e o apartheid na África do Sul. No Brasil, influenciaram políticas de branqueamento populacional e exclusão de negros e indígenas das esferas de poder e prestígio (Schwarcz, 1993).
As heranças coloniais do racismo permanecem profundamente enraizadas nas
sociedades modernas. A estrutura de desigualdade criada durante o período colonial deixou marcas duradouras, manifestando-se em
disparidades de acesso à educação, saúde, mercado de trabalho e participação
política.
No Brasil, por exemplo, a abolição da escravidão em 1888
não foi acompanhada por políticas efetivas de inclusão social. Ex-escravizados
e seus descendentes permaneceram marginalizados, muitas vezes sem acesso à
terra, à escolarização ou a condições dignas de trabalho (Gomes, 2017). Esse
cenário contribuiu para a formação de um racismo estrutural que persiste no
presente, reproduzindo desigualdades raciais por meio de mecanismos
institucionais e culturais.
No contexto global, antigas potências coloniais mantêm
relações econômicas desiguais com ex-colônias, perpetuando formas sutis de
dominação, conhecidas como neocolonialismo.
A imposição de padrões culturais eurocêntricos também continua afetando
identidades e tradições locais, promovendo a ideia de que modelos ocidentais de
organização social, política e econômica são superiores.
Além disso, o racismo contemporâneo é alimentado por estereótipos herdados do período colonial, que associam grupos racializados a atributos negativos ou limitantes. Essas representações influenciam a forma como indivíduos são tratados no sistema de justiça, no mercado de trabalho e nos meios de comunicação, mantendo desigualdades históricas sob novas roupagens.
As origens históricas do racismo moderno estão
profundamente ligadas à expansão colonial europeia, ao sistema escravocrata
transatlântico e às teorias pseudocientíficas do século XIX. Esses elementos
construíram uma base ideológica e estrutural que, mesmo após o fim formal da
escravidão e a deslegitimação científica do racismo biológico, continua
moldando as relações sociais, políticas e econômicas.
Para enfrentar o racismo contemporâneo, é necessário compreender essas raízes históricas, desconstruir os mitos que sustentam desigualdades e promover políticas reparatórias e de valorização da diversidade cultural e étnica.
• Eltis,
D., & Engerman, S. L. (2011). The
Cambridge World History of Slavery: Volume 3, AD 1420–AD 1804. Cambridge
University
Press.
• Gomes, F. S. (2017). A Hidra e os Pântanos: Quilombos e Mocambos no Brasil (Séculos
XVII–XIX). São Paulo: Editora
Unesp.
• Kevles,
D. J. (1985). In the Name of Eugenics:
Genetics and the Uses of Human Heredity. Cambridge: Harvard University
Press.
• Klein,
H. S., & Vinson, B. (2007). African
Slavery in Latin America and the Caribbean. Oxford University Press.
• Schwarcz,
L. M. (1993). O espetáculo das raças:
Cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870–1930. São Paulo:
Companhia das Letras.
• Stepan, N. L. (1991). The Idea of Race in Science: Great Britain, 1800–1960. Macmillan.
O racismo no Brasil é um fenômeno histórico e estrutural que molda as relações sociais desde o período colonial. Sua formação está diretamente ligada ao modelo escravocrata adotado durante mais de três séculos e à forma como se deu a abolição da escravidão. Além disso, a marginalização das populações negras e indígenas e a perpetuação de mitos como o da “democracia racial” contribuíram para mascarar desigualdades profundas e persistentes. A compreensão desses elementos é fundamental para desvelar as raízes do racismo brasileiro e propor caminhos para sua superação.
O Brasil foi o país que mais recebeu africanos escravizados
durante o tráfico transatlântico, contabilizando cerca de 4,8 milhões de
pessoas trazidas à força entre os séculos XVI e XIX (Klein & Luna, 2010). A
economia colonial e imperial brasileira baseou-se, durante séculos, na
exploração da mão de obra escravizada em atividades como a agricultura (açúcar,
café, algodão), a mineração e o trabalho doméstico.
A escravidão no Brasil foi marcada pela violência física,
psicológica e simbólica, bem como pela desumanização sistemática dos indivíduos
negros. Além disso, o país foi o último das Américas a abolir formalmente a
escravidão, com a assinatura da Lei Áurea em 13 de maio de 1888. A abolição foi
fruto de pressões internas e externas, mas ocorreu sem medidas reparatórias,
sem distribuição de terras e sem políticas de integração social e econômica
para a população liberta (Gomes, 2017).
Essa ausência de políticas pós-abolição consolidou um cenário de exclusão social e econômica que se perpetuou nas décadas seguintes, alimentando as desigualdades raciais que ainda persistem.
A formação social brasileira foi profundamente influenciada pela colonização portuguesa, que estruturou a sociedade a partir de
formação social brasileira foi profundamente influenciada
pela colonização portuguesa, que estruturou a sociedade a partir de um modelo
hierárquico e racializado. Nesse modelo, as populações indígenas foram alvo de
extermínio físico, cultural e territorial, seja pela escravização direta, pela
catequização forçada ou pela expulsão de suas terras (Ribeiro, 1995).
Já a população negra, após a abolição, enfrentou um
processo de marginalização social, sendo empurrada para ocupações de baixa
remuneração e para espaços urbanos periféricos. O Estado brasileiro, no início
do século XX, adotou políticas explícitas de incentivo à imigração europeia,
com o objetivo de promover o “branqueamento” da população — uma estratégia que
buscava não apenas substituir a mão de obra negra, mas também reforçar ideais
eugenistas que associavam brancura à modernidade e ao progresso (Skidmore,
1993).
Essa exclusão sistêmica impactou diretamente o acesso à educação, à saúde e ao mercado de trabalho, criando um ciclo de desigualdade que se mantém. Pesquisas contemporâneas mostram que pessoas negras e indígenas, no Brasil, ainda enfrentam taxas mais altas de desemprego, menores rendimentos e maior vulnerabilidade social em comparação à população branca (IPEA, 2019).
O mito da democracia
racial é uma das construções ideológicas mais persistentes na história
brasileira. Popularizado por Gilberto Freyre em obras como Casa-Grande & Senzala (1933), esse mito sustenta que, devido à
miscigenação e à convivência entre brancos, negros e indígenas, o Brasil teria
se desenvolvido como uma sociedade harmoniosa e livre de preconceitos raciais.
Embora Freyre tenha destacado aspectos de integração
cultural, sua interpretação negligenciou as relações de poder e dominação que
marcaram e marcam essas interações. Ao reforçar a ideia de ausência de racismo,
o mito da democracia racial funcionou como um mecanismo de negação da
desigualdade, dificultando a formulação de políticas públicas de combate à
discriminação (Hasenbalg, 1979).
Estudos sociológicos e estatísticos demonstram que, apesar da miscigenação, a desigualdade racial é evidente em todas as áreas: expectativa de vida, escolaridade, ocupação profissional, representação política e acesso a bens e serviços. A persistência desse mito contribui para invisibilizar o racismo e enfraquecer as reivindicações por ações afirmativas e reparatórias.
O racismo no contexto brasileiro é
resultado direto da
longa duração do sistema escravocrata, da ausência de medidas reparatórias após
a abolição e das políticas de exclusão direcionadas a populações negras e
indígenas. A herança colonial e o mito da democracia racial reforçam estruturas
de poder que naturalizam desigualdades, tornando o combate ao racismo um
desafio multidimensional.
Superar essa realidade exige reconhecer a existência e a gravidade do racismo, desconstruir narrativas que o negam e implementar políticas públicas efetivas de inclusão, reparação histórica e valorização das identidades negras e indígenas.
• Freyre,
G. (1933). Casa-Grande & Senzala.
Rio de Janeiro: Maia & Schmidt.
• Gomes,
F. S. (2017). A Hidra e os Pântanos:
Quilombos e Mocambos no Brasil (Séculos XVII–XIX). São Paulo: Editora
Unesp.
• Hasenbalg,
C. (1979). Discriminação e desigualdades
raciais no Brasil. Rio de Janeiro: Graal.
• IPEA.
(2019). Desigualdades Sociais por Cor ou
Raça no Brasil. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada.
• Klein,
H. S., & Luna, F. V. (2010). Slavery
in Brazil. Cambridge University Press.
• Ribeiro,
D. (1995). O povo brasileiro: A formação
e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras.
• Skidmore, T. E. (1993). Preto no Branco: Raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
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