DIRETOS DOS CIDADÃOS EM SITUAÇÃO DE RUA
A população em situação de rua constitui um dos segmentos sociais mais vulneráveis e invisibilizados da sociedade contemporânea. Essa condição não se refere apenas à ausência de moradia física, mas envolve um conjunto de fatores sociais, econômicos, psicológicos e culturais que colocam o indivíduo à margem dos direitos básicos e da participação cidadã plena. No Brasil, a definição oficial sobre essa população foi consolidada por meio da Política Nacional para a População em Situação de Rua (Decreto nº 7.053/2009), que a caracteriza como um grupo heterogêneo, composto por pessoas com vínculos familiares fragilizados ou rompidos, que utilizam logradouros públicos e áreas degradadas como espaço de moradia e/ou sustento, e que possuem em comum a extrema pobreza, o rompimento de laços familiares e a falta de moradia convencional regular.
A definição normativa, entretanto, precisa ser compreendida dentro de uma perspectiva ampliada, que considera a complexidade dos fatores que conduzem à vivência nas ruas. A situação de rua é um fenômeno multifatorial, e não pode ser reduzido apenas à indigência ou à falta de renda. Elementos como desemprego estrutural, violência doméstica, uso problemático de álcool e outras drogas, histórico de institucionalizações (como abrigos ou prisões), doenças mentais não tratadas, entre outros, contribuem para a ruptura dos vínculos sociais e familiares e para o ingresso e permanência nessa condição.
O perfil da população em situação de rua no Brasil revela
sua diversidade. Embora a maioria seja composta por homens adultos, observa-se
um aumento significativo do número de mulheres, crianças, adolescentes, idosos
e pessoas LGBTQIA+, cada qual enfrentando vulnerabilidades específicas.
Mulheres, por exemplo, estão mais expostas à violência sexual e à exploração,
enquanto pessoas LGBTQIA+ frequentemente relatam rejeição familiar e
discriminação institucional como causas diretas da vivência nas ruas. O Censo
da População em Situação de Rua, realizado periodicamente por municípios e
estados, tem evidenciado esse caráter plural e a necessidade de políticas
públicas mais segmentadas e sensíveis às diferentes realidades.
Outro aspecto central na caracterização dessa população é a precariedade do acesso aos direitos básicos. Embora a Constituição Federal de 1988 assegure o direito à moradia, à saúde, à educação e à assistência social para
todos os cidadãos, as pessoas em situação de rua são sistematicamente excluídas desses direitos. Muitas vezes não possuem documentos civis, o que dificulta o acesso a serviços públicos, além de enfrentarem barreiras institucionais e o preconceito social. A rua, nesse contexto, deixa de ser apenas um lugar de passagem ou moradia improvisada e se torna um espaço de sociabilidade e sobrevivência. Nesse espaço, constroem-se relações, estratégias de vida, identidades e até formas de organização coletiva.
Importante destacar que a vivência na rua não é homogênea. Há aqueles que estão em situação crônica, há anos sem moradia, e os que vivenciam a rua de forma temporária ou intermitente. A mobilidade é uma característica marcante, especialmente em grandes centros urbanos, onde a busca por oportunidades, assistência e segurança leva essas pessoas a circular entre bairros ou mesmo entre cidades. A sobrevivência cotidiana envolve múltiplas estratégias, como o trabalho informal, a coleta de recicláveis, a prestação de pequenos serviços e até a mendicância, sendo estas formas muitas vezes estigmatizadas e criminalizadas.
A invisibilidade social, por sua vez, é uma das principais marcas dessa condição. A sociedade frequentemente ignora, evita ou estigmatiza as pessoas em situação de rua, atribuindo-lhes estereótipos de desvio moral, preguiça ou periculosidade. Essa construção simbólica reforça ciclos de exclusão e legitima ações repressivas por parte do Estado, como a remoção forçada de pessoas dos espaços públicos, sem oferecer alternativas reais de acolhimento e reintegração social. Romper com essa lógica exige uma mudança de paradigma, que reconheça essas pessoas como sujeitos de direitos e promova o acesso integral às políticas públicas de forma digna e respeitosa.
Em síntese, a definição e caracterização da população em situação de rua deve ser feita de maneira ampla, sensível às complexidades individuais e coletivas, e embasada no respeito à dignidade humana. O reconhecimento dessa realidade é o primeiro passo para a construção de políticas públicas mais eficazes, justas e inclusivas, que visem não apenas o acolhimento emergencial, mas a promoção de caminhos reais de reintegração social e cidadania plena.
BRASIL. Constituição
da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília:
Senado Federal, 1988.
BRASIL. Decreto nº 7.053, de 23 de dezembro de
2009. Institui a Política
Nacional para a População em Situação de Rua. Diário
Oficial da União,
Brasília, DF, 24 dez.
2009.
PAIVA, M. C. A. de. População
em situação de rua e políticas públicas: desafios e perspectivas. Revista
Katálysis, Florianópolis, v. 23, n. 2, p. 224–
233, 2020.
SILVA, R. G. da; CUNHA, E. M. da. População em situação de rua: uma leitura
sobre os direitos sociais e o papel do Estado. Serviço Social &
Sociedade,
São Paulo,
n. 137,
p. 456–474,
2021.
MINAYO, M. C. de S. Desigualdades
e saúde: população em situação de rua. Ciência & Saúde Coletiva, v. 27,
n. 4, p. 1177-1186, 2022.
A situação de rua é o resultado de um processo complexo e multifacetado, influenciado por fatores sociais, econômicos, familiares e individuais. A condição de viver nas ruas não pode ser explicada por uma única causa, sendo fundamental compreender os múltiplos vetores que levam uma pessoa a perder sua moradia e a romper seus vínculos sociais. A abordagem das causas deve, portanto, estar inserida em um contexto mais amplo de desigualdade estrutural, vulnerabilidade social e insuficiência de políticas públicas eficazes.
Do ponto de vista econômico, a pobreza extrema constitui um fator determinante para o ingresso na situação de rua. A falta de acesso a oportunidades de trabalho formal, o desemprego prolongado, a informalidade e os baixos salários dificultam a manutenção de uma moradia regular e o sustento básico. A precarização das relações de trabalho, especialmente nas últimas décadas, tem ampliado o número de pessoas em vulnerabilidade habitacional. O aumento do custo de vida, os aluguéis elevados nos centros urbanos e a ausência de programas habitacionais acessíveis contribuem para que milhares de brasileiros se vejam impossibilitados de manter uma residência fixa, sendo empurrados para ocupações informais ou para a rua.
A insegurança econômica é agravada pela ausência de uma rede de proteção social sólida. A descontinuidade ou a fragilidade de políticas públicas de assistência social, aliada à burocracia para acesso a benefícios e serviços, faz com que pessoas em situação de vulnerabilidade sejam deixadas à margem das garantias constitucionais. Muitas vezes, o processo de
insegurança econômica é agravada pela ausência de uma rede de proteção social sólida. A descontinuidade ou a fragilidade de políticas públicas de assistência social, aliada à burocracia para acesso a benefícios e serviços, faz com que pessoas em situação de vulnerabilidade sejam deixadas à margem das garantias constitucionais. Muitas vezes, o processo de entrada na situação de rua ocorre de forma gradual, iniciando-se por uma série de perdas econômicas que resultam no endividamento, despejo e, finalmente, no rompimento com a estrutura de moradia.
Paralelamente aos fatores econômicos, existem determinantes sociais de grande impacto. Um deles é a ruptura dos vínculos familiares. A violência doméstica, os conflitos familiares, a negligência e o abandono são causas recorrentes, especialmente entre crianças, adolescentes, mulheres e pessoas LGBTQIA+. Esses grupos frequentemente buscam nas ruas uma alternativa à convivência em ambientes hostis, mesmo que essa escolha represente novos riscos. Em outros casos, o rompimento familiar ocorre de forma silenciosa, por desgaste acumulado, perda de contato ou ausência de redes de apoio.
Outro fator social relevante é o histórico de institucionalização. Muitos adultos em situação de rua foram, durante a infância, acolhidos em abrigos, casas-lares ou instituições públicas. A transição para a vida adulta, sem suporte adequado, pode levar esses jovens à rua, sobretudo em contextos de exclusão educacional e laboral. Da mesma forma, ex-detentos e pacientes egressos de hospitais psiquiátricos, ao deixarem instituições fechadas, encontram dificuldades para se reinserir socialmente, muitas vezes recaindo em situações de abandono e marginalização.
O uso abusivo de substâncias psicoativas, embora comumente estigmatizado como causa direta da situação de rua, é, na verdade, mais frequentemente consequência da vivência nas ruas ou um fator agravante em um quadro préexistente de vulnerabilidade. O consumo de álcool e drogas pode surgir como mecanismo de enfrentamento da dor, da solidão e da violência cotidiana vivida na rua. Por outro lado, quando presente anteriormente à situação de rua, o uso problemático pode agravar conflitos familiares e dificultar a inserção ou manutenção no mercado de trabalho.
A desigualdade estrutural e o racismo também exercem papel fundamental nesse contexto. A população negra e periférica é desproporcionalmente representada entre os cidadãos em situação de rua, reflexo direto de um histórico de
exclusão social, acesso desigual à educação, ao
trabalho e à moradia digna. A ausência de políticas públicas de equidade racial
e
territorial intensifica essas disparidades. Mulheres
negras, por exemplo, compõem um grupo extremamente vulnerável, vivenciando
múltiplas camadas de opressão e exclusão.
Em períodos de crise econômica ou sanitária, como a pandemia da COVID19, observa-se um aumento acentuado da população em situação de rua. O fechamento de comércios, a perda de empregos e o desmonte de serviços públicos agravam a condição de vulnerabilidade de milhões de pessoas. A informalidade, que sustenta grande parte da população economicamente ativa, mostrou-se frágil diante das restrições e instabilidade, expondo ainda mais a insuficiência das redes de apoio social em momentos de emergência.
Em conclusão, os fatores sociais e econômicos que levam à situação de rua são interdependentes e exigem uma abordagem abrangente e intersetorial. A compreensão desse fenômeno deve partir do reconhecimento da desigualdade estrutural que permeia a sociedade brasileira, das falhas nas políticas públicas e da necessidade de medidas que garantam não apenas o acolhimento emergencial, mas a prevenção, a reinserção e o respeito à dignidade de cada indivíduo. Somente por meio de ações articuladas, que envolvam o Estado, a sociedade civil e os próprios sujeitos em situação de rua, será possível enfrentar com eficácia esse grave problema social.
BRASIL. Decreto
nº 7.053, de 23 de dezembro de 2009. Institui a Política
Nacional para a População em Situação de Rua. Diário
Oficial da União,
Brasília, DF, 24 dez.
2009.
SILVA, M. L.; BRAGA, T. F. Situação de rua e políticas públicas: a exclusão social em evidência.
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MACHADO, A. R.; GUIMARÃES, T. D. Determinantes sociais da situação de rua: uma leitura crítica.
Cadernos de Saúde Pública, v. 37, n. 12, p. 1–12, 2021.
SOUZA, J. A
ralé brasileira: quem é e como vive. 4. ed. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2019.
SANTOS, M. B.; BARROS, D. D. As múltiplas faces da população em situação de rua: uma análise
sociológica. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 35, n. 104, p.
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A população em situação de rua é alvo frequente de estigmas e mitos que reforçam sua exclusão social e dificultam o acesso a direitos fundamentais. A construção social que se faz dessas pessoas, frequentemente baseada em julgamentos morais e em narrativas distorcidas, contribui para o aprofundamento das desigualdades e legitima práticas discriminatórias. Tais mitos não apenas obscurecem a complexidade do fenômeno da vivência nas ruas, mas também produzem efeitos concretos sobre a forma como a sociedade, o poder público e os próprios serviços de atendimento tratam essa parcela da população.
Um dos mitos mais recorrentes é o de que a pessoa em situação de rua está nessa condição porque quer. Essa ideia parte de uma concepção equivocada de escolha individual, desconsiderando os fatores estruturais que levam ao rompimento dos vínculos familiares, à perda da moradia e à exclusão dos serviços públicos. Pesquisas realizadas em diversas cidades brasileiras apontam que a maioria das pessoas em situação de rua deseja sair dessa condição, desde que tenham acesso a oportunidades reais de moradia, trabalho e cuidados de saúde. A perpetuação desse mito opera como um mecanismo de culpabilização da vítima, desresponsabilizando o Estado e a sociedade pela falta de políticas públicas eficazes (SOUZA, 2019).
Outro estigma amplamente difundido associa essa população
ao uso abusivo de drogas e à criminalidade. Embora existam casos em que o
consumo de substâncias esteja presente, tratá-lo como causa única ou principal
da situação de rua é reducionista e desonesto. Muitas vezes, o uso de drogas
ocorre como uma resposta ao sofrimento psíquico, à violência e à exclusão
vivenciadas nas ruas. A associação automática entre situação de rua e
periculosidade também é infundada, pois a maioria dessas pessoas está muito mais
exposta à violência do que a praticando-a. Estudos mostram que indivíduos em
situação de rua são frequentemente vítimas de agressões físicas, violência
institucional e homicídios, o que reforça a necessidade de abordagens pautadas
na proteção e não na repressão (MINAYO, 2022).
Há também o mito de que todas as pessoas em situação de rua são improdutivas ou não querem trabalhar. Essa percepção ignora a realidade de milhares de pessoas que realizam atividades informais, como coleta de materiais recicláveis, prestação de pequenos serviços, venda ambulante, entre outras formas de geração de renda. O
problema, muitas vezes, não é a ausência de disposição para o trabalho, mas a falta de acesso a oportunidades regulares e a políticas de inserção no mercado laboral. A informalidade e a precariedade dessas atividades revelam as limitações impostas por uma estrutura que exclui sistematicamente os mais pobres e vulneráveis (PAIVA, 2020).
O preconceito contra a população em situação de rua também se manifesta na forma como seus corpos e presenças são percebidos no espaço urbano. O incômodo estético, a desumanização e o medo irracional do "outro" produzem uma série de práticas de higienização social. Medidas como a instalação de barreiras físicas para impedir o descanso em bancos públicos, as remoções forçadas e as campanhas de "limpeza urbana" são exemplos de como o estigma se transforma em política concreta de exclusão. Essas ações reforçam a ideia de que a presença da população em situação de rua seria indesejável, suja ou perturbadora, quando, na verdade, o que deveria causar indignação é a naturalização da miséria em espaços públicos (SILVA & CUNHA, 2021).
O estigma, além de social, é institucional. Profissionais de saúde, assistência social, segurança pública e outros setores muitas vezes reproduzem, mesmo que involuntariamente, atitudes discriminatórias. Relatos de maus-tratos, negligência e recusa no atendimento são comuns entre essa população. O preconceito institucional reforça a sensação de rejeição e impede que muitos procurem os serviços públicos por medo de serem mal recebidos ou humilhados. Para romper com essa lógica, é necessário investir em formação continuada dos profissionais, pautada na ética, nos direitos humanos e na escuta qualificada (MACHADO & GUIMARÃES, 2021).
Superar os mitos e estigmas relacionados à população em situação de rua exige uma mudança de mentalidade coletiva e o fortalecimento de políticas públicas baseadas na dignidade humana. É preciso reconhecer que essas pessoas são cidadãos de direitos, com histórias, trajetórias e subjetividades únicas. Combater o preconceito passa por incluir esse tema em processos educativos, fomentar o diálogo com a sociedade e, sobretudo, promover ações concretas de inclusão social, como políticas de habitação, saúde mental, trabalho e renda.
Em vez de culpabilizar, é necessário acolher. Em vez de invisibilizar, é preciso dar voz. E, sobretudo, é fundamental compreender que o enfrentamento da situação de rua é um dever coletivo, que envolve o compromisso ético de garantir que ninguém
precise chamar a rua de lar por falta de alternativas dignas.
SOUZA, J. A
ralé brasileira: quem é e como vive. 4. ed. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2019.
PAIVA, M. C. A. de. População em situação de rua e políticas públicas: desafios e
perspectivas. Revista Katálysis, v. 23, n. 2, p. 224–233, 2020. MINAYO, M.
C. de S. Desigualdades e saúde: população
em situação de rua. Ciência & Saúde Coletiva, v. 27, n. 4, p.
1177–1186, 2022. SILVA, R. G. da; CUNHA, E. M. da. População em situação de rua: uma leitura sobre os direitos sociais e o
papel do Estado. Serviço Social &
Sociedade, n. 137,
p. 456–474, 2021.
MACHADO, A. R.; GUIMARÃES, T. D. Determinantes sociais da situação de rua: uma leitura crítica.
Cadernos de Saúde Pública, v. 37, n. 12, p. 1–12, 2021.
A invisibilidade social é um fenômeno estrutural que afeta especialmente os grupos mais vulneráveis da sociedade, entre eles, a população em situação de rua. Essa invisibilidade se expressa tanto na negligência do Estado quanto na indiferença ou rejeição da sociedade civil. Trata-se de um processo simbólico e material pelo qual certos sujeitos são apagados das dinâmicas sociais, deixando de ser reconhecidos como cidadãos plenos de direitos. A ausência de visibilidade pública e institucional compromete gravemente o acesso a políticas públicas, amplia a exclusão e intensifica a violação de direitos fundamentais.
O conceito de invisibilidade social pode ser compreendido como uma forma de não reconhecimento que transcende a ausência de representação midiática ou estatística. Ele envolve um conjunto de práticas cotidianas, institucionais e culturais que contribuem para tornar determinados grupos humanos praticamente “indistintos” aos olhos da sociedade. De acordo com o sociólogo Jessé Souza (2019), os indivíduos socialmente invisíveis são os que vivem à margem do consumo, da educação de qualidade, dos vínculos formais de trabalho e da participação política. São percebidos não como sujeitos de direitos, mas como resíduos da ordem social dominante.
No caso específico da população em situação de rua, a invisibilidade social assume dimensões ainda mais dramáticas. Essas pessoas são muitas vezes ignoradas em sua presença física nas calçadas, praças e esquinas. O olhar da sociedade tende a se
desviar, e o incômodo gerado por sua visibilidade momentânea acaba reforçando práticas de repressão e higienização, como remoções forçadas, políticas de “limpeza urbana” e arquiteturas hostis. Ao não reconhecer a humanidade e a dignidade desses indivíduos, a sociedade os relega a uma zona de não existência, onde suas vozes, dores e necessidades deixam de importar no debate público.
As consequências da invisibilidade social são profundas e múltiplas. No plano individual, há impactos na autoestima, na saúde mental e na identidade dos sujeitos. Ser constantemente ignorado ou tratado com desprezo compromete o senso de pertencimento e pode levar à internalização do estigma e da exclusão. A ausência de relações afetivas e de apoio emocional está frequentemente associada à depressão, ao sofrimento psíquico e ao uso problemático de substâncias. A invisibilidade também dificulta o acesso a serviços básicos, pois muitos profissionais de saúde, educação ou assistência social reproduzem os mesmos estigmas sociais que a população em geral.
No plano coletivo, a invisibilidade da população em situação de rua compromete a eficácia das políticas públicas. Sem dados precisos, diagnósticos contextualizados e escuta qualificada, o Estado não é capaz de desenvolver ações eficazes de prevenção, acolhimento e reintegração. Além disso, quando essas pessoas não são incluídas nas estatísticas oficiais ou nas prioridades orçamentárias, perpetua-se um ciclo de exclusão institucional. Mesmo programas como o Cadastro Único, o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e o Sistema Único de Saúde (SUS) enfrentam dificuldades para alcançar efetivamente essa população, seja por ausência de documentação, seja por barreiras territoriais ou burocráticas.
A invisibilidade social também impede que a sociedade reconheça a complexidade das trajetórias que conduzem à situação de rua. Ao contrário da imagem homogênea muitas vezes veiculada, a população em situação de rua é diversa em gênero, raça, idade e experiências de vida. São homens e mulheres, adultos e jovens, pessoas negras e brancas, cisgêneros e LGBTQIA+, cada um com uma história única de ruptura, resistência e, muitas vezes, de luta pela sobrevivência. Negar essa pluralidade é reduzir essas pessoas a estereótipos e desconsiderar as múltiplas formas de opressão que enfrentam.
Superar a invisibilidade social exige um esforço coletivo e intencional. No campo das políticas públicas, é necessário desenvolver instrumentos de monitoramento,
a invisibilidade social exige um esforço coletivo e
intencional. No campo das políticas públicas, é necessário desenvolver
instrumentos de monitoramento, escuta e participação que envolvam diretamente a
população em situação de rua. Os conselhos, conferências e fóruns sobre
políticas sociais devem garantir representação qualificada desses sujeitos. Na
sociedade civil, é fundamental promover ações educativas que combatam os
estigmas e valorizem a empatia, o respeito e a solidariedade. O papel da mídia
também é central: ao invés de reforçar narrativas de marginalidade ou ameaça, é
preciso visibilizar histórias, reivindicações e protagonismos.
Em última instância, a invisibilidade social é uma forma de violência simbólica que nega a existência do outro enquanto sujeito de direitos. Romper com esse ciclo significa reconhecer que cada pessoa em situação de rua tem um nome, uma trajetória e o direito de existir com dignidade. Visibilizar, neste contexto, é acolher, incluir e construir uma sociedade mais justa e igualitária.
SOUZA, Jessé. A ralé
brasileira: quem é e como vive. 4. ed. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2019.
PAIVA, M. C. A. de. População em situação de rua e políticas públicas: desafios e
perspectivas. Revista Katálysis, v. 23, n. 2, p. 224–233, 2020. MINAYO, M.
C. de S. Desigualdades e saúde: população
em situação de rua. Ciência & Saúde Coletiva, v. 27, n. 4, p.
1177–1186, 2022. SILVA, R. G. da; CUNHA, E. M. da. População em situação de rua: uma leitura sobre os direitos sociais e o
papel do Estado. Serviço Social &
Sociedade, n. 137,
p. 456–474, 2021.
BRASIL. Decreto nº
7.053, de 23 de dezembro de 2009. Institui a Política Nacional para a
População em Situação de Rua. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 24 dez.
2009.
A população em situação de rua está exposta a um conjunto de vulnerabilidades específicas que comprometem o exercício pleno da cidadania e o acesso aos direitos fundamentais. As condições precárias de vida nas ruas não apenas agravam situações de exclusão, mas também geram novos riscos e barreiras, especialmente nos campos da saúde, da segurança pessoal e da moradia. Tais vulnerabilidades não são aleatórias, mas fruto de uma construção social que marginaliza
esses indivíduos e os retira do amparo efetivo das políticas públicas.
No campo da saúde, a população em situação de rua enfrenta desafios graves e persistentes. A falta de acesso regular a serviços de atenção primária, a escassez de ações preventivas e a precariedade nas condições de higiene tornam essa população altamente vulnerável a doenças infectocontagiosas, problemas respiratórios, doenças de pele e enfermidades crônicas não tratadas. Além disso, a saúde mental é um dos aspectos mais comprometidos. Transtornos como depressão, ansiedade, esquizofrenia e transtorno bipolar são comuns, frequentemente agravados pela falta de acolhimento, pelo uso abusivo de substâncias e pela violência cotidiana nas ruas. A ausência de documentos pessoais e de um endereço fixo dificulta o acesso ao Sistema Único de Saúde (SUS), e a rotatividade territorial dessa população muitas vezes impede o acompanhamento médico continuado (MINAYO, 2022).
O Programa Consultório na Rua, criado para atender a essa
demanda, representa um avanço importante, mas ainda enfrenta limitações
operacionais e de cobertura. A escassez de equipes, a sobrecarga dos
profissionais e a insuficiência de recursos comprometem a eficácia do
atendimento. Outro obstáculo significativo é o preconceito institucional:
muitos profissionais da saúde ainda tratam essa população com desconfiança,
impaciência ou negligência, reforçando a lógica da exclusão. Assim, a saúde da
população em situação de rua permanece como um dos campos mais urgentes a serem
enfrentados por políticas públicas efetivas e humanizadas (PAIVA, 2020).
No tocante à segurança, a vivência nas ruas expõe as pessoas a diversas formas de violência. A ausência de um espaço privado e seguro faz com que estejam permanentemente vulneráveis a agressões físicas, assaltos, estupros, extorsões e homicídios. Mulheres em situação de rua, em especial, sofrem altos índices de violência sexual e exploração. Pessoas LGBTQIA+ também estão entre os grupos mais atacados, em razão do preconceito e da marginalização. Não raro, a violência parte de agentes estatais, como a polícia ou guardas civis, que praticam remoções forçadas, destruição de pertences e agressões, sob a justificativa de “limpeza urbana” ou manutenção da ordem pública. Tais práticas são reflexos da criminalização da pobreza e da ausência de políticas de segurança pública orientadas pelos direitos humanos (SILVA & CUNHA, 2021).
A insegurança também se expressa na constante instabilidade da vida
nas ruas. A cada dia, a pessoa em situação de rua precisa encontrar locais para dormir, proteger seus poucos pertences e se defender de ataques e intempéries. A ausência de equipamentos públicos suficientes, como abrigos, centros de acolhida e unidades de atendimento emergencial, amplia o desamparo. Mesmo quando há oferta desses serviços, muitas vezes eles não respeitam a individualidade, a diversidade e a autonomia das pessoas, o que leva ao abandono precoce ou à recusa da institucionalização.
A moradia, por sua vez, é um direito constitucional que permanece sistematicamente negado à população em situação de rua. A falta de uma política habitacional inclusiva, aliada à especulação imobiliária, à concentração fundiária e à ausência de subsídios efetivos para a população de baixa renda, impede que milhares de brasileiros tenham acesso a uma moradia digna. Para aqueles em situação de rua, o déficit habitacional é vivido de forma extrema: a rua torna-se o único espaço possível, mesmo que precário, instável e insalubre. Iniciativas como programas de moradia temporária ou aluguel social ainda são incipientes, e muitas vezes não alcançam as especificidades dessa população, como a necessidade de acompanhamento psicossocial, a adaptação dos espaços e o respeito às trajetórias pessoais (MACHADO & GUIMARÃES, 2021).
O direito à moradia, além de um teto, implica acesso à infraestrutura urbana, saneamento básico, transporte, saúde, educação e trabalho. Sem esse conjunto de garantias, a reinserção social das pessoas em situação de rua torna-se inviável. O simples fornecimento de abrigos noturnos ou a institucionalização compulsória não resolve o problema de fundo e, muitas vezes, reproduz lógicas de controle e exclusão. É necessário investir em modelos alternativos, como a moradia assistida e programas de habitação permanente com suporte comunitário, que respeitem a autonomia e favoreçam a construção de vínculos sociais e afetivos.
As vulnerabilidades específicas em saúde, segurança e moradia não são aspectos isolados, mas profundamente interligados. A precariedade em uma dessas áreas intensifica as dificuldades nas demais, gerando um ciclo de exclusão difícil de romper. O enfrentamento dessas vulnerabilidades exige políticas intersetoriais, que articulem assistência social, saúde, habitação, segurança pública e educação, com enfoque na promoção de direitos e na redução das desigualdades. É imprescindível que essas políticas sejam construídas com a participação ativa
vulnerabilidades específicas em saúde, segurança e moradia não são aspectos isolados, mas profundamente interligados. A precariedade em uma dessas áreas intensifica as dificuldades nas demais, gerando um ciclo de exclusão difícil de romper. O enfrentamento dessas vulnerabilidades exige políticas intersetoriais, que articulem assistência social, saúde, habitação, segurança pública e educação, com enfoque na promoção de direitos e na redução das desigualdades. É imprescindível que essas políticas sejam construídas com a participação ativa da população em situação de rua, reconhecendo-os como sujeitos de direitos, com voz, identidade e projetos de vida.
MINAYO, M. C. de S. Desigualdades e saúde: população em situação de rua. Ciência &
Saúde Coletiva, v. 27, n. 4, p. 1177–1186, 2022. PAIVA, M. C. A. de. População em situação de rua e políticas
públicas: desafios e perspectivas. Revista Katálysis, v. 23, n. 2, p.
224–233, 2020. SILVA, R. G. da; CUNHA, E. M. da. População em situação de rua: uma leitura sobre os direitos sociais e o
papel do Estado. Serviço Social &
Sociedade, n. 137,
p. 456–474, 2021.
MACHADO, A. R.; GUIMARÃES, T. D. Determinantes sociais da situação de rua: uma leitura crítica.
Cadernos de Saúde Pública, v. 37, n. 12, p. 1–12, 2021.
BRASIL. Decreto nº
7.053, de 23 de dezembro de 2009. Institui a Política Nacional para a
População em Situação de Rua. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 24 dez.
2009.
A rua, enquanto espaço urbano, é tradicionalmente concebida como lugar de trânsito, comércio, convívio e expressão pública. Contudo, para milhares de brasileiros em situação de rua, esse espaço assume um significado radicalmente distinto: a rua se transforma em moradia forçada, local de trabalho informal, território de exclusão, mas também em espaço de sobrevivência e resistência cotidiana. A vida nas ruas, ainda que marcada por privações e violências, é também um campo onde emergem estratégias de adaptação, redes de solidariedade e formas singulares de organização e enfrentamento da realidade.
Sobreviver nas ruas exige uma reinvenção constante da vida. Privadas de direitos básicos como moradia, alimentação, segurança e saúde, as pessoas em situação de rua desenvolvem mecanismos para suprir suas necessidades imediatas em um ambiente hostil e imprevisível. A alimentação é muitas vezes garantida
por meio de doações, coleta de alimentos descartados e cozinhas solidárias. O banho e a higiene são viabilizados em espaços públicos como praças, postos de gasolina ou por meio de serviços pontuais oferecidos por instituições religiosas ou assistenciais. O trabalho informal, a coleta de recicláveis, o artesanato e a prestação de pequenos serviços representam alternativas de geração de renda, ainda que instáveis e insuficientes. A rua, assim, é apropriada como um espaço de produção da vida, mesmo sob os efeitos do abandono social (SOUZA, 2019).
Essa apropriação, no entanto, não ocorre sem conflito. A
presença de pessoas em situação de rua nas áreas centrais das cidades é
frequentemente tratada pelas autoridades e por setores da sociedade como
problema a ser removido ou ocultado. Estratégias de “higienização urbana”, como
a expulsão forçada de moradores de rua, a destruição de barracos, a instalação
de mobiliários urbanos hostis e a criminalização de práticas como a mendicância
ou o descanso em espaços públicos, são instrumentos utilizados para expulsar
esses sujeitos da visibilidade. Nesse contexto, a rua não é apenas local de
sobrevivência, mas também de disputa simbólica e política pelo direito à cidade
(SILVA & CUNHA, 2021).
Apesar das adversidades, a rua também pode ser entendida como espaço de resistência. Resistir, neste caso, não é apenas suportar as privações, mas afirmar a própria existência diante de uma sociedade que constantemente deslegitima essas vidas. A resistência se manifesta na manutenção dos vínculos comunitários entre os moradores de rua, na criação de redes de apoio mútuo, na solidariedade cotidiana e até na ocupação coletiva de espaços públicos como forma de reivindicação de políticas de habitação e assistência. Existem diversos exemplos de movimentos sociais organizados por pessoas em situação de rua, como o Movimento Nacional da População em Situação de Rua, que atua em diversas cidades do Brasil e reivindica direitos, visibilidade e participação em conselhos e fóruns públicos (PAIVA, 2020).
A rua, nesse sentido, não é apenas um espaço físico, mas um território social carregado de significados. É o palco onde se revelam as contradições de uma sociedade desigual, mas também o lugar onde emergem formas alternativas de convivência, resistência cultural e expressão política. As práticas cotidianas dos moradores de rua demonstram agências complexas, que desmentem a ideia de passividade frequentemente atribuída a essa população. A
construção de barracas improvisadas, a apropriação criativa de materiais descartados, a convivência em grupos protetores e até as estratégias de negociação com o poder público são exemplos de como essas pessoas desenvolvem modos próprios de lidar com a cidade e com a exclusão.
É importante destacar que a resistência também passa pela subjetividade. Manter a identidade, cultivar laços afetivos, resgatar memórias e construir narrativas sobre si mesmo são atos fundamentais de resistência simbólica. Em muitos casos, a rua torna-se o único espaço onde essas pessoas podem ser quem são, fora das estruturas institucionalizadas que, muitas vezes, anulam sua autonomia. A construção de vínculos de confiança com outros em situação semelhante, o apoio de agentes de saúde e assistência social humanizados, e o reconhecimento por parte da sociedade são fundamentais para fortalecer essa resistência e pavimentar caminhos para a superação da situação de rua.
Entretanto, é essencial reconhecer que a vivência na rua não deve ser romantizada. Trata-se de uma condição extrema, marcada por violações, sofrimento e risco constante. O reconhecimento da rua como espaço de resistência não deve jamais servir como justificativa para a negligência do poder público ou para a manutenção da situação de rua como destino naturalizado. Pelo contrário, reconhecer a força e a dignidade daqueles que sobrevivem e resistem nas ruas deve fortalecer a luta por políticas públicas estruturantes, como moradia digna, atenção psicossocial, educação e geração de renda.
Em suma, a rua é, para a população em situação de rua, mais do que cenário de exclusão: é também espaço de construção de vida, identidade e resistência. Visibilizar essas dinâmicas, escutar as vozes daqueles que nela vivem e incorporar suas experiências às políticas públicas é um passo indispensável para uma sociedade verdadeiramente democrática e inclusiva.
SOUZA, Jessé. A ralé
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